terça-feira, 16 de junho de 2009

Movimentos Sociais criminalizados

É indiscutível que existe uma tendência à criminalização dos movimentos sociais. Tal fenômeno não é novo; as estruturas patriarcalistas brasileiras sempre tiveram escassa tolerância com demandas de reforma vindas da base. Atribui-se a Washington Luís, Presidente entre 1926 e 1930, a frase síntese dessa concepção: “a questão social é caso de polícia”.
A questão social continua sendo caso de polícia. E para que essa percepção continue sendo inculcada na sociedade, é preciso caracterizar e estigmatizar os grupos que lutam por direitos sociais como criminosos.
Os indígenas que lutam pela terra na Reserva de Raposa Serra do Sol sabem bem o que significa essa estigmatização. Desordeiros, preguiçosos, incapazes de plantar e produzir, só queriam se apropriar
do suor do trabalho dos outros. “é coisa de quem tem comida na mesa todos os dias”, assim criticou uma popular a decisão do Supremo Tribunal Federal que garantiu a demarcação contínua – e a desocupação dos não indígenas da área.
Pressupõe-se que os plantadores estavam ali distribuindo arroz de graça. “Vamos embora para a Guiana” - foi repetida inúmeras vezes pela imprensa a ameaça dos plantadores, despertando
os terrores mais profundos do imaginário nacional. O índio preguiçoso fica, o empresário produtivo deixa o país (800 mil?). Não foi tão divulgado o fato de que a Guiana não parece tão ansiosa em conceder terras a tão denodados empreendedores: eles ali permaneceriam em terras do governo, impedidos de adquirir propriedade, e pagando sua permanência em produção. Não foi tão noticiado o fato de que ao saírem da reserva, arrasaram tudo, tocando fogo inclusive em plantações de arroz. A ver se daqui a uns cinco anos algum deles estará estabelecido e feliz na Guiana, enquanto as terras indígenas estarão mergulhadas no atraso e na improdutividade...
No âmago da criminalização da questão indígena e agrária, está a mística do agronegócio. Opor-se ao agronegócio, a salvação da lavoura brasileira, é crime de lesa pátria.
O agronegócio triunfante tornou obsoleta a reforma agrária, devendo ser extirpada do campo não ela, que jamais se concretizou,
mas a erva daninha, o movimento que insiste, contra toda a verdade neoliberal, em nos lembrar dela. No máximo, concedem estes teóricos, a reforma agrária poderia fazer algum sentido nos rincões atrasados e distantes do país, como o Nordeste; nos demais, bafejados pelo vento modernizador do agronegócio, insistir nela não é só burrice, mas um verdadeiro crime contra a segurança econômica nacional.
OK, o agronegócio resolveu os problemas da lavoura no Sul, Sudeste, e agora está promovendo a redenção do Centro Oeste. Não se fala em devastação ambiental, em pesados subsídios, em concentração de renda, nos riscos da monocultura, na exploração dos “bóias frias”, no esvaziamento do campo... Mas e no Nordeste, onde, salvo a cana de açúcar, em acelerado processo de decadência, não se firmou nenhuma cultura viável? Porque uma fazenda em Puxinanã ou Pocinhos seria tão relevante para o cenário agrícola nacional?
Ora, o sem terra que ocupa capoeiras pontilhadas de pedras secas aqui, amanhã invadirá uma próspera fazenda de gado no Rio Grande do Sul. Ao agricultor desdentado do Nordeste resta aguardar por sua vez, quando o agronegócio tornará estas terras esturricadas em verdejantes prados, como em Israel.
No Brasil, as demandas sociais não chegam nem perto de algo parecido a uma transformação, por mínima que seja, da estrutura existente. Elas envelhecem, tornam-se antiquadas ou fora-de-moda, sem que nenhuma das condições que as geraram tenham sido modificadas. A reforma agrária caducou, perdeu o sentido. Já não há mais sentido em falar-se em sem terra – todos têm a opção de morar nas cidades. O campo já não precisa de tantos trabalhadores.
E na cidade? Reforma urbana? com estes preços imobiliários? melhor o governo investir em outra coisa, de preferência na geração de empregos. Reforma política? nem pensar. O que nunca passa de moda é o subsídio, o socorro a empresas privadas afetadas pela conjuntura internacional desfavorável.
O que nunca passa de moda é a repressão. A incapacidade da sociedade periférica e desigual de neutralizar pelo consumo os desfavorecidos, deve ser suprida pelo tradicional uso do porrete.
E tome criminalização. Marchas de sem terra? Hostes bárbaras
prontas a invadir e depredar. Associações de trabalhadores? Meros ralos onde o dinheiro público é empregado em baderna e desordem. Escolas do MST? Verdadeiras madrassas, onde é treinado
o terrorista de amanhã – bomba nelas, ao estilo de Gaza! Vozes de alto coturno clamam por providências contra as cusparadas na cara da ordem pública, “pois estamos tratando de mortes”. Mortes, como todo mundo sabe, exigem uma reação drástica. Contra aqueles
que as causaram e contra os movimentos cuja ideologia malsã e subversiva armou de palavras de ordem, foices e revólveres, os autores do crime. Presunção de inocência? Só para fidalgos, como já preconizavam as vetustas ordenações.
Não se criminalizam as filantrópicas porque há algumas que desviam verbas. Outro parlamentar critica a “criminalização” de indicados políticos, só porque se pretendia substitui-los por servidores
de carreira. Mas atribuir ao conjunto de um movimento social atos criminosos praticados por alguns parece algo muito natural.
Enquanto os movimentos sociais são demonizados, o país se moderniza mantendo tudo do jeito que está. Chafurdamos na modernidade kitsh, como a Índia do filme “Quem quer ser um milionário”. Ao favelado, o deserdado do campo, que fique rico no tráfico, no show de calouros ou pelo menos sobreviva no teleatendimento
internacional (porque não trazemos essa modernidade para cá também? Faltaria algum subsídio? Ou cursinho de inglês?)
As pequenas propriedades rurais só aparecem no debate público
por tabela, nunca como exemplo das virtudes de uma distribuição
equilibrada da terra (como o pequeno lavrador vai concorrer no mercado internacional?). Depois de quarenta anos, pretende-se por em prática o Código Florestal, elaborado na época da ditadura,
exigindo-se a preservação das áreas de proteção permanente e reserva legal. Então surge o protesto. E os pequenos proprietários do Rio Grande do Sul, como irão plantar uvas nas encostas (áreas de proteção permanente, segundo o Código)? É preciso mudar essa legislação antiquada, em descompasso com a nova realidade agrícola nacional – de produtivos cultivos de uva nas encostas, cana na amazônia, maconha na caatinga e soja no cerrado. Por outro lado, a reserva legal das propriedades também é excessiva... porque não compensar o aproveitamento total de fazendas em área de mata atlântica com a inscrição de generosas reservas legais na Amazônia (e incentivar, via de consequência, o lucrativo negócio da grilagem)?
Pretende-se proteger o minifúndio, finalmente lembrado. Mas se o Código Florestal for flexibilizado, o beneficiado será o de sempre – o latifúndio.

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