sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Crise do Direito (Plauto Faraco de Azevedo)

A crise perpassa o direito positivo, no qual, desde antes do neoliberalismo, já se esboçava a inflação legislativa, configurada pelas leis-recorte, que regulam pequenos extratos da realidade social, para que, em substância, tudo permaneça como antes. Dessa sorte, à lei sobrevém a Lei, gerando a insegurança social e a descrença no direito. Abusa-se do caráter instrumental das leis, que perdem a força moral indispensável à sua efetiva vigência.
Além da confusão legislativa reinante, tem o jurista contra si o peso da formação jurídica positivista, que lhe dificulta valorizar os fatos, as leis e os interesses que as perpassam. Sua reflexão é perturbada pela cisão do discurso jurídico, notadamente em três perspectivas: dogmática, filosófica e sociológica. Daí resulta o descaminho da ciência jurídica orientada pela ‘ideologia da separação’,1 que é veiculada e reproduzida pelo ensino jurídico.
Dessa concepção resulta um discurso jurídico multifacetado, requerendo, para cada um dos aspectos em que é cindido, um ator diverso designado como competente. Ao jurista stricto sensu cabe o conhecimento da estrutura do direito positivo, devendo limitar-se a juízos de constatação sobre a ordem jurídica. Para ajustar-se a esse paradigma, deve desempenhar uma atividade tipicamente avalorativa, que termina por aliená-lo dos valores, sem os quais o direito positivo não pode ser satisfatoriamente pensado e aplicado. A cisão operada entre a lei e os valores torna o problema da justiça irrelevante ao jurista, designando-se como competente para tal o filósofo do direito. O resultado final e pior dessa divisão do direito em partes estanques – uma lógica (atribuída ao jurista) e outra axiológica (atribuída ao jusfilósofo) – é que o jurista, notadamente o juiz, torna-se indiferente aos efeitos produzidos pelo direito positivo, para cuja consideração seria competente o sociólogo do direito. Essa cisão, sobre ser insustentável, é socialmente prejudicial.
A tarefa do jurista ‘consiste, precisamente, em trabalhar com estes três elementos, dando a cada um a participação que, por natureza, lhe corresponde’. É certo que a dogmática, a lógica e a estimativa jurídicas ‘formaram-se em épocas diversas, obedecendo a movimentos intelectuais independentes, de tal modo que, na época atual, recém-chegam à conjunção, achando-se a concepção jurídica corrente atrasada, porque formada por tão-só um dos fatores, normalmente pela dogmática’. É este, dentre eles, ‘o mais antigo e também o mais perigoso, por poder exorbitar-se acriticamente. Recolhe-se da literatura contemporânea a expressão de um desconcerto: ninguém afina seu instrumento com o do vizinho’. Isso ocorre por não tomarem os juristas a teia de sua ciência por seus três fios.2
Vedada a valorização das leis e a aferição de seus efeitos, sobra ao jurista a função de explicar e fazer compreender a ordem jurídica. No entanto, essa função de indiscutível relevância, assim delimitada, o leva a supervalorizar os conceitos jurídicos, cultivados com elevado grau de abstração, a ponto de, freqüentemente, confundi-los com a realidade ou de fazê-lo sobrepor-se a ela.
Prevalece o estudo analítico-descritivo das instituições jurídicas, que é, sem sombra de dúvida, essencial à compreensão e à prática do direito. Tendo o jurista de dominar as estruturas legais vigentes, sua hierarquia, organização e os conceitos que as permeiam e articulam, não há, no entanto, por que isolá-las da perspectiva crítico-valorativa. Sem esta, não há como compreender satisfatoriamente o direito positivo, tendo em vista sua razoável aplicação e aperfeiçoamento.
O ensino jurídico está longe de realizar a vinculação das diversas dimensões do direito. Constata-se, nele, o caráter formal da filosofia do direito, desarticulada do conjunto e da ênfase curricular, e a superficialidade das noções de sociologia e história do direito. Há uma preocupação exacerbada com a cientificidade do direito, esquecendo-se dos problemas e necessidades humanas em função de que existe. ‘O ensino jurídico, assim fechado, desemboca no círculo cerrado do raciocínio jurídico.’3 Esquecem-se velhas e sábias lições, dentre as quais sobreleva a de que os conceitos existem para a vida, e não a vida para os conceitos,4 e a de que o centro da gravidade do desenvolvimento jurídico há de ser, em qualquer tempo, a sociedade.5
Há que se mudar o vezo persistente de apresentar doutrinas e teorias jurídicas desligadas de suas condicionantes sociais e políticas, de tal modo que se torna difícil optar entre elas.6 Não é eticamente defensável que o jurista ignore a dramaticidade do quadro social à sua frente, a pretexto de assegurar ‘objetividade científica à ciência do direito’.
Dado relevante da crise do direito, no Brasil, acha-se na excessiva valorização do direito processual, de tal modo que, na esfera judiciária, tal visão termina por dificultar a consideração dos interesses que gravitam no processo. É, em síntese, a prevalência da forma sobre o fundo do litígio. A experiência mostra que, quanto mais processo no processo se discute, menos justiça se faz. O homem comum, destinatário das regras jurídicas, não entende o significado das filigranas processuais, projetando sobre juízes e tribunais seu sentimento de perplexidade e frustração diante da instituição judiciária.7

Nenhum comentário:

Postar um comentário