A maior vitória das elites civis e militares que comandavam a ditadura foi ter feito os trabalhadores, no início dos anos 1980, acreditarem que a tinham derrotado.
Por Danilo Dara
Passados cerca de 30 anos, hoje podemos afirmar sem medo de errar: a maior vitória obtida pela última ditadura no Brasil foi a maneira como ela impôs a “redemocratização” do país. De forma similar ao que já tinha ocorrido por aqui durante a (falsa) Abolição em 1888, quando as elites escravocratas se anteciparam às pressões abolicionistas e assinaram a abolição formal que era mais conveniente para elas – sem qualquer reparação real aos negros escravizados, a maior vitória das elites civis e militares que comandavam a ditadura no início dos anos 1980 foi ter feito os trabalhadores acreditarem que a tinham derrotado [1]. Como sempre, diante da possibilidade de qualquer perda de controle, as elites brasileiras se não podem recorrer ao massacre, optam pela assimilação e falsificação dos anseios das classes populares.
E, sem desmerecer toda a verdadeira pressão exercida à época por trabalhadores organizados, pelo fim da ditadura e pelas “Diretas Já”: nunca antes na história deste país um “longo programa de transição”, anunciado com todas as letras pelos generais fascistas de turno (Geisel e Figueiredo), seria tão bem incorporado dali em diante pelas “forças progressistas e democráticas” que se organizavam forte e sinceramente para derrubá-los, e para tentar transformar a sociedade como um todo: uma “Abertura lenta, gradual e segura”.
Ora, tem sido uma transição tão Lenta que, ainda hoje, passados cerca de 30 anos de seu início, somos obrigados a lidar com os arquivos da dita-cuja ainda fechados a sete-chaves (tendo os generais forjado a Anistia exigida originalmente pelos resistentes); com muitos corpos de militantes da resistência ainda desaparecidos, e suas mortes não-esclarecidas; e com todos os agentes civis e militares do período agindo por aí, impunemente, na ativa pública ou na segurança privada, sem terem sido julgados e punidos nos devidos termos da própria lei “democrática”.
Tem sido uma transição tão Gradual que, somente cerca de 20 anos depois, absolutamente seguros de que não teriam seus principais interesses econômicos e políticos sequer tocados, é que entregariam a presidência ao primeiro ex-operário e seu controlado partido de “trabalhadores”.
E, finalmente, uma transição tão Segura que - aqui talvez o mais importante de tudo: manteve-se o aparato repressivo, penal e policial, intacto em muitos sentidos. Quando não mais sofisticado, aprimorado e ainda mais brutal - agora voltado totalmente contra a população pobre, indígena-descendente e negra, principalmente, das periferias das grandes cidades do país.
Uma “transição permanente”, em suma.
Passados cerca de 30 anos, hoje podemos afirmar sem medo de errar: a maior vitória obtida pela última ditadura no Brasil foi a maneira como ela impôs a “redemocratização” do país. De forma similar ao que já tinha ocorrido por aqui durante a (falsa) Abolição em 1888, quando as elites escravocratas se anteciparam às pressões abolicionistas e assinaram a abolição formal que era mais conveniente para elas – sem qualquer reparação real aos negros escravizados, a maior vitória das elites civis e militares que comandavam a ditadura no início dos anos 1980 foi ter feito os trabalhadores acreditarem que a tinham derrotado [1]. Como sempre, diante da possibilidade de qualquer perda de controle, as elites brasileiras se não podem recorrer ao massacre, optam pela assimilação e falsificação dos anseios das classes populares.
E, sem desmerecer toda a verdadeira pressão exercida à época por trabalhadores organizados, pelo fim da ditadura e pelas “Diretas Já”: nunca antes na história deste país um “longo programa de transição”, anunciado com todas as letras pelos generais fascistas de turno (Geisel e Figueiredo), seria tão bem incorporado dali em diante pelas “forças progressistas e democráticas” que se organizavam forte e sinceramente para derrubá-los, e para tentar transformar a sociedade como um todo: uma “Abertura lenta, gradual e segura”.
Ora, tem sido uma transição tão Lenta que, ainda hoje, passados cerca de 30 anos de seu início, somos obrigados a lidar com os arquivos da dita-cuja ainda fechados a sete-chaves (tendo os generais forjado a Anistia exigida originalmente pelos resistentes); com muitos corpos de militantes da resistência ainda desaparecidos, e suas mortes não-esclarecidas; e com todos os agentes civis e militares do período agindo por aí, impunemente, na ativa pública ou na segurança privada, sem terem sido julgados e punidos nos devidos termos da própria lei “democrática”.
Tem sido uma transição tão Gradual que, somente cerca de 20 anos depois, absolutamente seguros de que não teriam seus principais interesses econômicos e políticos sequer tocados, é que entregariam a presidência ao primeiro ex-operário e seu controlado partido de “trabalhadores”.
E, finalmente, uma transição tão Segura que - aqui talvez o mais importante de tudo: manteve-se o aparato repressivo, penal e policial, intacto em muitos sentidos. Quando não mais sofisticado, aprimorado e ainda mais brutal - agora voltado totalmente contra a população pobre, indígena-descendente e negra, principalmente, das periferias das grandes cidades do país.
Uma “transição permanente”, em suma.
A “Era das Chacinas”
Não tivesse sido assim, não teria se iniciado no Brasil – logo na sequência da promulgação da tal “Constituição Cidadã” (em 1988), aquilo que os companheiros e companheiras da Rede Contra Violência do Rio de Janeiro chamam de a “Era das Chacinas”, cujo marco de nascimento fora justamente a terrível Chacina de Acari, em julho de 1990. De lá pra cá, conforme vamos cada vez mais “aprofundando essa tal democracia”, temos vivido uma série sem fim de matanças e massacres populares cotidianos, que têm como casos emblemáticos a Chacina de Acari (1990), o Massacre do Carandiru (1992), da Candelária e de Vigário Geral (1993), de Corumbiara (1995), de Eldorado dos Carajás (1996), da Praça da Sé e de Felisburgo (2004), a Chacina da Baixada Fluminense (2005), os Crimes de Maio (2006), do Complexo do Alemão (2007), do Morro da Providência (2008), de Canabrava (2009), a Chacina de Vitória da Conquista e os Crimes de Abril na Baixada Santista (2010)… E por aí infelizmente temos ido... Entre tantos outros episódios! Uma verdadeira “Democradura”, ou “Democracia Totalitária”.
Os Crimes de Maio de 2006, que agora completam 5 anos, foram o acontecimento mais brutal e mais emblemático até aqui desta “nova era democrática”: mais de 500 pessoas assassinadas, em menos de 10 dias, somente no estado de São Paulo, por agentes policiais e grupos de extermínio em pronta “defesa da ordem”. O maior massacre da história contemporânea brasileira. Em pouco mais de uma semana, foram mais jovens pobres e negros assassinados do que durante todos os mais de 20 anos de terrível ditadura civil-militar assassinaram nas fileiras de seus opositores, em todo o país. Assim como para os antigos ditadores, até aqui nenhum dos atuais exterminadores foi devidamente julgado e punido.
Mais uma terrível expressão daquilo que vínhamos tratando: diante da menor possibilidade de perda de controle (neste caso era o controle da cidade de São Paulo que estava em jogo), a pronta reação vem ou na forma do Massacre puro e simples; ou, quando se avalia não ter força suficiente para tanto, na forma da Assimilação e da Falsificação (“quando não pode com seu inimigo, ‘junte-se’ a ele”, recomenda o ditado popular). Em Maio de 2006 foi o Massacre que falou mais alto durante aquela semana, até que se retomassem as negociações rotineiras, e a “guerra de baixa intensidade” do normal dia-dia. Neste ano de 2011, já foram mais de 100 pessoas assassinadas por policiais no estado de São Paulo, sob a verdadeira "licença para matar" da rubrica "resistência seguida de morte".
Os Crimes de Maio de 2006, que agora completam 5 anos, foram o acontecimento mais brutal e mais emblemático até aqui desta “nova era democrática”: mais de 500 pessoas assassinadas, em menos de 10 dias, somente no estado de São Paulo, por agentes policiais e grupos de extermínio em pronta “defesa da ordem”. O maior massacre da história contemporânea brasileira. Em pouco mais de uma semana, foram mais jovens pobres e negros assassinados do que durante todos os mais de 20 anos de terrível ditadura civil-militar assassinaram nas fileiras de seus opositores, em todo o país. Assim como para os antigos ditadores, até aqui nenhum dos atuais exterminadores foi devidamente julgado e punido.
Mais uma terrível expressão daquilo que vínhamos tratando: diante da menor possibilidade de perda de controle (neste caso era o controle da cidade de São Paulo que estava em jogo), a pronta reação vem ou na forma do Massacre puro e simples; ou, quando se avalia não ter força suficiente para tanto, na forma da Assimilação e da Falsificação (“quando não pode com seu inimigo, ‘junte-se’ a ele”, recomenda o ditado popular). Em Maio de 2006 foi o Massacre que falou mais alto durante aquela semana, até que se retomassem as negociações rotineiras, e a “guerra de baixa intensidade” do normal dia-dia. Neste ano de 2011, já foram mais de 100 pessoas assassinadas por policiais no estado de São Paulo, sob a verdadeira "licença para matar" da rubrica "resistência seguida de morte".
Eterno aprimoramento da democracia
É este o melhor retrato da “democracia” que inúmeros setores da classe trabalhadora e das chamadas esquerdas têm se engajado e se especializado em gerenciar, aprimorando-a constantemente nos últimos anos aqui no país. É trágico, mas é real. E, é óbvio: ganhando cada vez mais dinheiro, cargos, status, e poder com isso, distanciando-se progressivamente da maioria que vive nos fundões sociais – ainda que possam manter a retórica classista e de esquerda. Partidos Socialistas e de Trabalhadores, Centrais Sindicais, inúmeras ONGs, vários Movimentos Sociais de maior ou menor envergadura: todos absolutamente engajados e dedicados ao “fortalecimento das instituições” e ao “aprofundamento da democracia” deste Estado Brasileiro. Logo deste…
Ou não têm sido inúmeros os setores da chamada “esquerda histórica” aqueles que têm aprimorado os instrumentos de gestão e controle do Estado Brasileiro frente a sua população, principalmente, ao longo dos últimos 10 anos?! Sim, o mesmo Estado que anunciou recentemente, no “Mapa da Violência no Brasil” (de 2011), divulgado pelo insuspeito Ministério da Justiça, que neste pujante Brasil Redemocratizado matou-se mais de 500.000 pessoas de 1998 a 2008, sendo a grande maioria jovens pobres e negros, nascidos e criados nas periferias do país.
É, portanto, nos bairros populares e nas periferias que a verdade desta democracia capitalista tem comido solta, nua e crua: tanto sua face mais brutal e violenta, encarnada na polícia e nos grupos de extermínio de alguma maneira ligados ao estado, os quais sabem ser a periferia o território principal a ser controlado e “pacificado”; como a face mais bonita, poética e verdadeiramente revolucionária, porque de negação do atual estado das coisas, e de tentativa de afirmação – em alguns espaços autônomos incipientes, de cultivo à coletividade - de um Novo Homem e uma Nova Sociedade possível.
Afinal, sabemos: se depender dos velhos partidos, das velhas máfias sindicais, de direita ou de esquerda, deste oceano de ONGs, mesmo dos velhos movimentos sociais e outros espaços burocratizados: nada de novo sairá deste matagal, deste verdadeiro deserto, a não ser o lento, gradual e seguro aprofundamento da democracia deles. A não ser, portanto, o cumprimento integral do programa anunciado pelos Generais Geisel e Figueiredo, os últimos dos ditadores. Uma transição lenta, gradativa, segura e indefinida... Uma transição permanente, ou a perene “consolidação da democracia”. Felizes para sempre…
Contra esta pasmaceira, do limite da Dor e da Luta, começam a nascer Novas Flores e Movimentos verdadeiros, como as Mães de Maio de SP, a Rede Contra Violência do RJ e tantas outras movimentações periféricas, surgidas do Luto e da Busca pela Verdade de quem realmente Necessita de Mudanças Reais e Radicais, Urgentes, por Justiça e Liberdade. Sem nada nem ninguém intermediando os sentimentos, as decisões, as palavras e a organização de Outro Viver.
Ao que tudo indica, o caminho está apenas no começo e, como sempre, não será nada fácil. Persistência, porém, dá pra sentir que não faltará.
Danilo Dara é historiador.
* Texto recém-publicado no livro Mães de Maio – Do Luto à Luta (Movimento Mães de Maio, Nós por Nós, 2011), lançado no dia 12/05/2011, quando se completaram 5 anos dos Crimes de Maio. Para mais informações sobre o livro, e como adquirí-lo: http://www.maesdemaio.blogspot.com .
[1] Foi o professor e parceiro Paulo Arantes quem, até onde tenho notícia, denominou esta derrota-na-vitória da classe trabalhadora nos termos aqui grifados. A ele um Salve! pela precisão desta formulação, e por tantos outros desvios críticos fundamentais sobre a forma atual da guerra de classes.
Ou não têm sido inúmeros os setores da chamada “esquerda histórica” aqueles que têm aprimorado os instrumentos de gestão e controle do Estado Brasileiro frente a sua população, principalmente, ao longo dos últimos 10 anos?! Sim, o mesmo Estado que anunciou recentemente, no “Mapa da Violência no Brasil” (de 2011), divulgado pelo insuspeito Ministério da Justiça, que neste pujante Brasil Redemocratizado matou-se mais de 500.000 pessoas de 1998 a 2008, sendo a grande maioria jovens pobres e negros, nascidos e criados nas periferias do país.
É, portanto, nos bairros populares e nas periferias que a verdade desta democracia capitalista tem comido solta, nua e crua: tanto sua face mais brutal e violenta, encarnada na polícia e nos grupos de extermínio de alguma maneira ligados ao estado, os quais sabem ser a periferia o território principal a ser controlado e “pacificado”; como a face mais bonita, poética e verdadeiramente revolucionária, porque de negação do atual estado das coisas, e de tentativa de afirmação – em alguns espaços autônomos incipientes, de cultivo à coletividade - de um Novo Homem e uma Nova Sociedade possível.
Afinal, sabemos: se depender dos velhos partidos, das velhas máfias sindicais, de direita ou de esquerda, deste oceano de ONGs, mesmo dos velhos movimentos sociais e outros espaços burocratizados: nada de novo sairá deste matagal, deste verdadeiro deserto, a não ser o lento, gradual e seguro aprofundamento da democracia deles. A não ser, portanto, o cumprimento integral do programa anunciado pelos Generais Geisel e Figueiredo, os últimos dos ditadores. Uma transição lenta, gradativa, segura e indefinida... Uma transição permanente, ou a perene “consolidação da democracia”. Felizes para sempre…
Contra esta pasmaceira, do limite da Dor e da Luta, começam a nascer Novas Flores e Movimentos verdadeiros, como as Mães de Maio de SP, a Rede Contra Violência do RJ e tantas outras movimentações periféricas, surgidas do Luto e da Busca pela Verdade de quem realmente Necessita de Mudanças Reais e Radicais, Urgentes, por Justiça e Liberdade. Sem nada nem ninguém intermediando os sentimentos, as decisões, as palavras e a organização de Outro Viver.
Ao que tudo indica, o caminho está apenas no começo e, como sempre, não será nada fácil. Persistência, porém, dá pra sentir que não faltará.
Danilo Dara é historiador.
* Texto recém-publicado no livro Mães de Maio – Do Luto à Luta (Movimento Mães de Maio, Nós por Nós, 2011), lançado no dia 12/05/2011, quando se completaram 5 anos dos Crimes de Maio. Para mais informações sobre o livro, e como adquirí-lo: http://www.maesdemaio.blogspot.com .
[1] Foi o professor e parceiro Paulo Arantes quem, até onde tenho notícia, denominou esta derrota-na-vitória da classe trabalhadora nos termos aqui grifados. A ele um Salve! pela precisão desta formulação, e por tantos outros desvios críticos fundamentais sobre a forma atual da guerra de classes.
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