Por Robespierre de Oliveira |
A década de 1960 foi marcada por grandes conflitos e mobilizações sociais, nas quais a questão da liberdade era fundamental. Além do combate contra a opressão econômica e política, colocou-se em debate a questão sexual, o racismo, a emancipação da mulher, os direitos humanos, a liberdade de expressão, entre outras questões. A perspectiva de uma revolução social colocava-se para além da transformação do sistema econômico e político. O confronto de gerações tomou dimensões jamais imaginadas. A juventude questionava o modo de vida, propondo uma nova estética, novas roupas, novo comportamento, novas atitudes. Do “flower power” dos hippies à “imaginação no poder” das ruas de Paris, passando pelos Black Panthers, a juventude (operários e estudantes) elaborou diferentes níveis de sua perspectiva de mudança social e de libertação. Nesse contexto, Herbert Marcuse tornou-se conhecido de um público para além do meio acadêmico, por ser um defensor do movimento de libertação, em todas as suas formas: o movimento feminista, o movimento ecológico, o movimento operário, o movimento estudantil, o movimento negro, a guerra de libertação das colônias, a guerrilha latino-americana, o combate ao stalinismo e a luta contra o imperialismo, entre outros. Não só a postura política de Marcuse foi admirada, como também sua posição teórica. De fato, sua filosofia encontrou eco nos anseios de muitos jovens. Entretanto, Marcuse afirmava que o movimento de libertação da juventude não se baseava em suas teorias, mas nas próprias necessidades vitais dela.
“A recusa do intelectual pode encontrar apoio noutro catalisador, a recusa instintiva entre os jovens em protesto. É a vida deles que está em jogo e, se não a deles, pelo menos a saúde mental e capacidade de funcionamento deles como seres humanos livres de mutilações. O protesto dos jovens continuará porque é uma necessidade biológica. Por natureza, a juventude está na primeira linha dos que vivem e lutam por Eros contra a Morte e contra uma civilização que se esforça por encurtar o atalho para a morte, embora controlando os meios capazes de alongar esse percurso. Mas, na sociedade administrativa, a necessidade biológica não redunda imediatamente em ação; a organização exige contraorganização. Hoje, a luta pela vida, a luta por Eros, é a luta política.” (Eros e Civilização).
Clamor por libertação
O movimento dos anos 1960 resulta do contexto histórico, político, social e cultural. Havia a sombra dos horrores da guerra, das duas primeiras guerras mundiais, da possibilidade de uma catástrofe nuclear anunciada pela Guerra Fria, da guerra da Coreia e do Vietnã. A União Soviética entrara num processo de crise que a levaria à Perestroika e a seu fim em 1991. Krushev delatou os crimes de Stalin, após sua morte, na década de 1950. Isso fez com que países do bloco soviético tentassem libertar-se, como a Hungria em 1956 e a Thecoslováquia em 1968. Por outro lado, Cuba teve de se submeter à União Soviética para salvar sua revolução, a qual deu novo fôlego à luta contra o imperialismo norte-americano e às lutas contra o colonialismo, principalmente na África. Essa também foi uma época de grande desenvolvimento tecnológico, que popularizou o automóvel e a televisão e anunciou a robótica e o computador. Do ponto de vista cultural, avançou a indústria cultural ao mesmo tempo em que os jovens buscavam experiências rebeldes e alternativas, como o existencialismo de Sartre e Camus, os beatniks, os junkies, os punks dos anos 1950 e 1960, os hippies, as peças de Samuel Beckett, a pop arte, o rock’n’roll, o rhythm’n’blues, o cinema novo (seja brasileiro, a nouvelle vague, o cinema italiano, Bergman e o cinema japonês), entre outras. A necessidade dos jovens estava em não querer ir para guerra, em não ter uma vida medíocre, em explorar os potenciais criativos, em explorar o corpo e o prazer. Isso implica combater a moral, os costumes, as ideologias vigentes, assim como dedicar-se a um trabalho exaustivo e alienante. Para as mulheres, tratava-se de combater o machismo, assumir seu corpo (principalmente com a invenção da pílula anticoncepcional) e ter posições sociais. Para os negros, tratava-se de ter direitos civis (principalmente nos Estados Unidos e na África do Sul). De modo geral, era uma época clamando por libertação.
Marcuse, desde o início de sua obra, teve como mira a perspectiva utópica de transformação da realidade existente. Por “utopia”, entenda-se algo possível, embora ainda não realizado (cf. Ernst Bloch), e não a conotação do senso comum de “sonho impossível”. Em seu texto Sobre a Filosofia Concreta (1928), afirmava que a filosofia como atividade humana deveria preocupar-se com os homens. Em Filosofia e Teoria Crítica (1937), afirmou que a teoria crítica se encontra com o materialismo na preocupação com a transformação da realidade social e que essa se dá visando à felicidade material dos homens. Em Razão e Revolução (1941), postula que a teoria de Marx superou o idealismo hegeliano por pretender a realização da felicidade.
A felicidade
A questão da felicidade surge como medida da crítica à realidade existente. Considerando-se a crítica da economia política como a crítica das relações sociais, entende-se que o problema do modo de vida é produto dos próprios homens. O problema da humanidade, segundo Marx, surgiu quando as relações sociais entre os homens transformaram-se em relações econômicas, as quais pressupõem a desigualdade. Desde Platão, são muitos os filósofos que tentaram vislumbrar a possibilidade de uma sociedade humana mais harmoniosa. No caso do capitalismo, desde seu início, houve contestações a seu estabelecimento. As diversas utopias eram um protesto contra o modo de vida, tal como a contracultura dos anos 1960. Marx viu no sistema capitalista, graças ao desenvolvimento das forças produtivas, a possibilidade de superar a dominação do homem pelo homem (incluindo a dominação das mulheres e da natureza). Entretanto, apesar das bases materiais estarem dadas, a dominação ideológica mantém o sistema funcionando com todas as suas contradições. O grande problema para Marx estaria no obscurecimento da consciência de classe dos trabalhadores. A questão é: como a maioria se submete à exploração de uma minoria, sem coerção física? Diferentemente de outros sistemas econômicos, o trabalho no capitalismo é livre. A pressuposição de liberdade organiza o sistema ideológico de dominação.
Walter Benjamin foi um dos primeiros a perceber como os meios de reprodução técnica das mercadorias (incluindo a obra de arte) afetaram a estrutura social. Até o século 19, os trabalhadores não eram verdadeiramente consumidores, havia um grande fosso entre eles e as classes mais abastadas. Mesmo a obra de arte tinha um caráter diverso, poder-se-ia dizer elitista. Com a reprodutibilidade técnica, as mercadorias baixaram seu custo e passaram a ser acessíveis, integrando os trabalhadores de fato à ordem social. Comparado com o século 19, o século 20 insere os indivíduos no frenesi da ordem capitalista de tal modo que parece haver um déficit. A obra de arte perde sua aura, os homens perdem a capacidade de narrar, o efeito de choque impede os homens de desfrutar desinteressadamente da paisagem, a racionalidade torna-se cada vez mais instrumental. Marcuse critica o processo de reificação, em que os homens são tomados como coisas, ao afirmar que o corpo pode ser objeto de trabalho penoso, mas não do prazer. Nietzsche já criticara a moral cristã por seu culto ao sofrimento e negação do prazer e da felicidade. Freud escreveu que o processo civilizatório busca esconder o caráter animal dos homens, como a repressão à sexualidade.
Assim, a moral, a ideologia, a reificação, o processo de consumo, a racionalidade instrumental estão na base do processo de dominação que os próprios homens livremente atendem. A percepção dos frankfurtianos, entre outros, é que o processo de dominação capitalista não é apenas econômico ou político, mas envolve o todo da vida. A luta contra o capitalismo torna-se uma necessidade biológica em virtude do encurtamento da própria existência dos indivíduos, seja por meio de guerras, de consumo de pesticidas, de drogas químicas, de trabalho penoso, de asfixia psíquica. Christoph Türcke, em A Sociedade Excitada (2010), revela a sociedade contemporânea como a do masoquismo social.
Em O Homem Unidimensional (1964), Marcuse pergunta se a ameaça da catástrofe atômica pode garantir a liberdade, se se deve continuar a viver à beira do abismo. A luta por Eros, o princípio de vida, exige uma vida pacificada, contrária à ordem estabelecida da ameaça constante. Os jovens nos anos 1960 tentaram exprimir sua rebeldia e revolta contra a ordem e o modo de vida desde oferecendo flores aos militares até combatendo nas ruas. A contracultura buscava estabelecer meios alternativos da existência, assim como as antigas utopias. Alguns buscavam experiências em antigas culturas, como o uso de drogas para escapar da realidade opressiva. O surrealismo tem muita identidade com essas tentativas. “Sejamos realistas, exijamos o impossível.”
A revolução sexual, preconizada por Wilhelm Reich nos anos 1920, foi possível graças à pílula. As mulheres queimaram seus sutiãs contra a dominação machista. Marcuse apoiou o movimento feminista, o movimento ecológico e diversos outros. Mas ele tinha claro que o processo de contenção estava cada vez mais presente. Não à toa, um de seus últimos livros, Contrarrevolução e Revolta (1972), adverte para o perigo iminente da contrarrevolução. Não se pode esquecer do desfecho da Primavera de Praga, quando os tanques soviéticos sufocaram o desejo de liberdade dos tchecoslovacos. Ditaduras militares foram implantadas na América Latina e em outros continentes. A aids deu motivo para uma contrarrevolução sexual. A queda do Muro de Berlim, em 1989, reforçou o tema do fim das ideologias. Hoje as mulheres devem retroceder à moral religiosa. O clamor de libertação foi silenciado. As utopias são negadas. Mas as contradições não resolvidas ainda permitem pensar suas possibilidades.
Fonte: Revista Cult
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