segunda-feira, 23 de maio de 2011

Marx e o complexo de Dom Casmurro dos marxistas: mais sobre o não-direito em Marx


Apesar de Machado de Assis ter assumido certo conservadorismo político, para seu tempo, parece interessante fazer uma breve analogia lúdica entre seu “Dom Casmurro” e o problema do direito para Marx e a tradição marxista.


No afamado livro de Machado de Assis, paira a dúvida de Bentinho, o protagonista casmurro, acerca da fidelidade de sua esposa e a trama que se desenvolve sobre este sentimento ganha em complexidade porque a suposta traição teria se dado com o melhor amigo de Bento, o admirado Escobar. Afora o fato de se tratar de enredo envolto numa visão de mundo patriarcal e colonial de um Brasil recém-republicano, a analogia pode parecer representativa, na medida em que opera a permuta de personagens: Bentinho, Capitu e Escobar podem ser substituídos por “marxistas”, Marx e “o direito”.

Muito mais do que falar na traição ou não de Capitu, o romance “Dom Casmurro” trata de evidenciar o ciúme de Bentinho com relação à esposa. Daí podermos arriscar uma análise, na esteira aliás da crítica literária nacional, de que o que importa não é o fato em si da infidelidade conjugal, mas sim do sentimento extremo de zelo criado pelo marido. Trocando em miúdos: o problema, aqui, não está no que é visto mas no olho de quem vê.

Uma legião de juristas vem se formando, nas últimas décadas, sob os auspícios da “crítica jurídica”. Com ela caminham para tornar o velho direito – instrumento por excelência das elites – mais, digamos, “popular”. E o fazem lançando mão de vários pincenês (para lembrar os óculos sem haste que caracterizou a imortal imagem de Machado de Assis). Um destes, sem embargo de dúvida, é o marxismo.

Machado de Assis e seu pincenê favorito

No entanto, é muito difícil conciliar uma aproximação marxista ao direito em uma sociedade sem um horizonte socialista definido. Talvez disso não se apercebam os jovens ou nem tão jovens assim “críticos marxistas do direito” que se formam nas carteiras centenárias das escolas jurídicas nacionais (para me restringir ao Brasil e não ousar vôos mais altos quiçá igualmente plausíveis). Mas é importantíssimo ter isso em vista: por mais que as esquerdas nacionais, em seus redutos, discutam sobre o projeto político que se deve seguir (essencialmente, se o democrático-popular e suas variantes ou se o imediatamente socialista), parece razoavelmente evidente que o socialismo não passa de horizonte e que estamos um tanto longe da propriedade comum dos meios de produção e, assim, distantes de uma transição revolucionária. Quer dizer, uma coisa é a proposição, outra a transição.

Eis que, neste redemoinho político, surgiu-me a jocosa expressão “o complexo de Dom Casmurro” para assinalar a postura dos críticos do direito que se afirmam, teórica e praticamente, em Marx e no marxismo.

Um realmente extenso rol de autores centrais poderia ser registrado para se discutir a relação entre o direito e a proposta marxista: Lênin, Lucacs, Grâmsci, Poulantzas, Bloch e Altusser, para não falar nos juristas soviéticos, seriam apenas os mais representativos deles, no século XX. A meu ver, sempre que problemas políticos como “estado”, “revolução”, “transição” ou “poder” aparecem – e eles sempre aparecem nas reflexões dos marxistas –, em voga está a supracitada relação. E isto para não reforçar temários mais clássicos ainda, como “ideologia”, “relações infra e superestrutura” ou “legitimidade/legalidade”.

Na crítica jurídica mesma, durante os últimos anos, muito se produziu e se pensou sobre o assunto: desde os europeus até os latino-americanos, dentre os quais poderia destacar Roberto Lira Filho ou Óscar Correas.

Mas sem dúvida nenhuma a relação já estava colocada no próprio velho Marx. Reconhecer o encontro da relação já na obra marxiana não significa, entretanto, pacificar a questão; ao contrário, significa torná-la mais polêmica ainda. Concordo inteiramente com a crítica, mesmo porque se trata de uma tranqüila concordância: não há uma teoria do direito em Marx e sequer entre os clássicos subseqüentes do marxismo, Êngels inclusive, ela medrou.

O problema não é este, como sabemos. A questão é saber sobre a possibilidade de se afirmar ou não a positividade do direito em sua obra. Melhor dizendo, significa inquirir sobre a coerência com sua obra da afirmação de uma teoria do direito. Em geral, a resposta é: impossível! Em Marx, o direito assim como o estado não encontram guarida teórica. Mas o que fazer (perguntariam os leninistas) com a realidade posta?

Daí o “complexo de Dom Casmurro” ganhar força: Marx (Capitu) traiu ou não o marxismo (Bentinho) com o direito (Escobar)?

Nunca se saberá, ao menos enquanto perdurarem as forças terrestres que guiam a vida humana, se Marx aprovaria teoricamente ou não o uso tático do direito e, se por acaso sim, de que modo o ratificaria. E isto, na verdade, não importa muito mesmo. Como disse, é mais o cisco no olho que dificulta a visão da realidade do que a realidade mesma, neste caso. É justamente a incerteza marxiana quanto ao direito que impulsiona o marxismo crítico e criativo o qual devemos esculpir; caso contrário, seremos meros papagaios-de-pirata, macaqueadores colonizados. E, friso, não é em nome da criatividade que afasto o horizonte de abolição do “jurídico”: ao revés, esta é uma hipótese das mais pujantes.

Assim é que poderemos ler, com os olhos inchados de hoje, a situação frente a qual Marx se colocou em 1850. Na Alemanha feudal de então era preciso agir de acordo com os momentos históricos pré-democráticos, democráticos e pós-democráticos (revolucionário, portanto):

No interesse do proletariado rural e no seu próprio interesse, os operários têm de opor-se a este plano. Têm de exigir que a propriedade feudal confiscada fique propriedade do Estado e seja transformada em colónias operárias, que o proletariado rural associado explore com todas as vantagens da grande exploração agrícola; desde modo, o princípio da propriedade comum obtém logo uma base sólida, no meio das vacilantes relações de propriedade burguesas. Tal como os democratas com os camponeses, têm os operários de unir-se com o proletariado rural. Além disso, os democratas ou trabalharão directamente para uma República federativa ou, pelo menos, se não puderem evitar uma República una e indivisível, procurarão paralisar o governo central mediante o máximo possível de autonomia e independência para as comunas e províncias. Frente a este plano, os operários têm não só de tentar realizar a República alemã una e indivisível, mas também a mais decidida centralização, nela, do poder nas mãos do Estado. Eles não se devem deixar induzir em erro pelo palavreado sobre a liberdade das comunas, o autogoverno, etc. Num país como a Alemanha, onde estão ainda por remover tantos restos da Idade Média, onde está por quebrar tanto particularismo local e provincial, não se pode tolerar em circunstância alguma que cada aldeia, cada cidade, cada província ponha um novo obstáculo à actividade revolucionária, a qual só do centro pode emanar em toda a sua força. — Não se pode tolerar que se renove o estado de coisas actual, em que os alemães, por um mesmo passo em frente, são obrigados a bater-se separadamente em cada cidade, em cada província. Menos do que tudo pode tolerar-se que, através de uma organização comunal pretensamente livre, se perpetue uma forma de propriedade —, que ainda se situa aquém da propriedade privada moderna e por toda a parte se dissolve necessariamente nesta — a propriedade comunal, e as desavenças dela decorrentes entre comunas pobres e ricas, assim como o direito de cidadania comunal, subsistente, com as suas chicanas contra os operários, ao lado do direito de cidadania estatal. Tal como na França em 1793, o estabelecimento da centralização mais rigorosa é hoje, na Alemanha, a tarefa do partido realmente revolucionário.

A par disso, o trecho final do mesmo escrito de Marx é eloqüente:

Se os operários alemães não podem chegar à dominação e realização dos seus interesses de classe sem passar por todo um desenvolvimento revolucionário prolongado, pelo menos desta vez têm eles a certeza de que o primeiro acto deste drama revolucionário iminente coincide com a vitória directa da sua própria classe em França e é consideravelmente acelerado por aquela.
Mas têm de ser eles próprios a fazer o máximo pela sua vitória final, esclarecendo-se sobre os seus interesses de classe, tomando quanto antes a sua posição de partido autónoma, não se deixando um só instante induzir em erro pelas frases hipócritas dos pequeno-burgueses democratas quanto à organização independente do partido do proletariado. O seu grito de batalha tem de ser: a revolução em permanência (Mensagem da Direção Central à Liga dos Comunistas).

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